18/11/10

FRANCISCO CARNEIRO FERNANDES




CAIXEIRO-VIAJANTE


 Respiro lojas modestas e grandes, comércios vivos no imaginário, e meu Mestre das Letras, Felipe Fernandes, ao balcão das ferragens, ó Mestre Cesário!
Na loja de ferragens da minha infância
Fantasia para nada – dirão os jovens de hoje na Net em banda larga – trocar virtualidade global interactiva por trocas de sonhos em álbuns com cola de farinha triga, sem bytes, sem Messenger, sem Webcam. Apenas álbuns, e tapetes coloridos de entrançados com os maços vazios dos cigarros...
As caricas, ou sameiras, conchas de refrigerantes das pessoas ricas, mas de tanta viagem em jogos solidários, respiram histórias infinitas por contar! Também os cromos dos futebolistas, digo, bilhetinhos, que se jogavam nas ruas com a palma da mão "a virar", e se trocavam às dúzias por um difícil "de sair", valiam ouro... na caderneta completa ao trocar a bola de farrapos por uma de couro!...
Na loja de ferragens da minha infância, a pequenada extasiava quando o caixeiro-viajante bem falante abria a mala e, num ápice, um universo de magia reluzia!... Miniaturas – pensava eu – de coisas mais que reais... Pasta Couraça (para os pobres), Couto, Colgate, Signal e Binaca, sabonetes de limão e alfazema, Lux, Lavanda, Patti, Musgo Real; Palmolive, artigos de barbear, e harmónicas para embalar os corações!
Cutelarias de Guimarães (Vila das Taipas); cordoarias do Gandra (Viana) e da Vila de Fão; aluquetes, ferragens de cromados reluzentes, alicates e chaves de múltiplas formas e funções; lâminas "Nacet"; limas folha de oliveira, murças, bastardas e limatões (Tomé Feteira).
O recoveiro trazia as ferragens mais pesadas! Panelas, marmitas, sertãs e fogareiro (Casa Tamegão), máquinas de cozinhar a petróleo e álcool desnaturado (Vacuum), semeadores ALBA e do Fontes de Vilar de Mouros; sacos de pregos, tacholas e tachas para as socas e tamancos; redes prós galinheiros e latadas. Sem esquecer as alfaias de Rio Meão, as ferragens de Águeda, e artesanais – incluindo as dobradiças bem oleadas n’Abelheira – dos ferreiros da nossa região!...
Na loja de ferragens da minha infância, o caixeiro-viajante cumprimentava toda a gente! Era elegante, inteligente, tinha a cultura da Sabedoria!
Também na loja de fazendas se desfazia em prendas, com delicadeza: amostras luzidias, dos tecidos de lã e sedas, linho, algodão, tafetá e popeline... Era uma qualidade, brilhante e suave, que hoje, com tanta formação contínua dos recursos humanos para atendimentos
personalizados, é utopia, porque ninguém tem nem faz sem alma Poesia, que havia nas lojas antigas do meu bairro!
Quando for grande, quero ser caixeiro-viajante. Cumprimentar toda a gente, com delicadeza e empatia, e falar... tão bem como ele! Na Rua antiga da Piedade... Harmónicas, para embalar os corações, a mostrar tecidos sempre vivos e ferragens sem idade... Essências, em frasquinhos de perfume cor de lilás!
Caixeiro-viajante, onde estás?...
(1), Rua da Piedade antiga das mercearias, fazendas, drogarias, sapatarias e tascas, abriam-se mundos de porta em porta! A petizada coleccionava cores e aromas do que sobrava no chão da vida... Pratinhas de rebuçados e sabonetes, embalagens de fósforos, cigarros e pastas de dentes, selos carimbados; tudo servia, para as lojinhas de trocas no meu bairro!


 (1) FERNANDES, Francisco Carneiro: Na Poética dos Lugares, ed. Ancorensis Cooperativa de Ensino, V. P. de Âncora, Julho 2009. (*) Prof. de Geografia fcfhortel@gmail.com


 



Foto inserida no poema "Café", do livro "Na Poética dos Lugares".
O espaço corresponde a um café de Praga, em estilo "Art Deco", na Avenida Venceslau.


Obra que recomendo ler...



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