CONTO DE NATAL A 4 MÃOS
O sol luminoso e aconchegante daquela manhã não amenizava o frio cortante que se sentia desde bem cedo. A avó Florinda gritou da cozinha ”Tiago, leva o casaco!”, mas ele já saíra sem lhe dar ouvidos.
Sentia-se bem quando caminhava pelas ruas da Ribeira, ali nascera, ali dera os primeiros passos, sempre fora acarinhado, afinal não era um menino qualquer, era o neto do pescador Salvador. O avô Salvador fora um verdadeiro “lobo do Mar”, respeitado por todos e idolatrado por alguns. Sempre que ele pronunciava ou vociferava algo, sob aquelas barbas brancas, onde se escondiam mil e uma histórias, era religiosamente ouvido!
Tiago enquanto caminhava sentia um odor agradável. Um cheirinho a Natal pairava no ar, as pessoas com quem se cruzava, de semblantes luminosos, sorriam-lhe! Na época natalícia, algo nos impele a sermos solidários, a sermos amigos dos amigos, mas na verdade viviam-se tempos difíceis. A toda a hora ouvia a avó Florinda dizer ”Ai meu filho, este país está uma desgraça!...nem no tempo que o teu avô estava semanas sem ir ao mar…sentíamos este aperto!...onde iremos parar?...” Confesso que estas interrogações da avó me inquietavam um pouquinho, mas também sabia que a avó Florinda, agora a matriarca da família, tudo faria para que o nosso Natal fosse mágico, esplendoroso, como sempre fora!
Continuei o meu passeio e apesar de saber que não poderia demorar, pois prometera à avó Florinda acabar de colocar os enfeites de natal, dirigi-me até ao cais, como fazia tantas vezes. Sou um rapaz como todos os outros de onze anos, adoro jogar futebol, Playstation, ver televisão…mas também adorava passear com o avô Salvador, ao longo do cais. Acabávamos sempre por nos sentar e ficava a ouvi-lo…era sempre levado em viagens fantásticas, onde afoitamente enfrentávamos a ira do mar e regressávamos a terra orgulhosos dos nossos feitos… caramba, sinto tanta saudade do meu avô Salvador!...Sinto uma lágrima persistente a querer rolar na minha bochecha e imagino os meus colegas de turma a gozarem-me “olha que mariquinhas!!”…não, eu não vou chorar! O meu avô decerto não me quer ver triste e ele não iria gostar de ver o Tiaguinho, como carinhosamente me tratava, com um ar tristonho na festa mais bonita do ano: o nosso Natal!
Regressei com passo apressado, distraí-me, era sempre assim, nunca dava pelo passar do tempo quando ia até ao cais, quem me dera que fosse assim nas aulas de matemática! Entrei em casa e ouvi de imediato a avó Florinda “Tiago Manuel, vem cá!”…ui, sempre que a avó Florinda me tratava desta maneira havia tempestade pela certa.
– Sim, avó!? Que foi que eu fiz desta vez?
– Ainda perguntas, meu malandro? Sabes muito bem que não arrumaste o teu quarto antes de saíres. Além do mais, não achas que está frio demais lá fora, para ires sem um agasalho? – resmunga a minha avó.
– “Vó”, eu sou duro… sou neto de um pescador, lembras-te?
– Pois…pois, meu menino. Está-me a parecer é que queres passar o dia de Natal deitado numa cama de hospital.
Sem dar mais ouvidos à minha avó, subi as escadas em espiral que dão para a parte de cima da casa, onde ficam os dois únicos e minúsculos quartos da casa de meus avós. Arrumei toda a confusão que estava no meu quarto. O passeio até ao cais, juntamente com algumas noites mal dormidas devido aos testes escolares dos últimos dias, fizeram com que me sinta cansado e com algum sono – apesar de ainda à poucas horas me ter levantado. Deitei-me na cama e logo adormeci.
– Senhor Doutor, o que tem o meu neto? – pergunta a avó de Tiago ao pediatra que estava de serviço na urgência.
– Ainda não sei bem, minha senhora. Mas o seu neto, vai ter de ficar internado para observações. – responde amavelmente o médico.
Estou cheio de febre e sinto o corpo todo dorido. Quase nem percebo a quem pertencem estas vozes, quanto mais o que elas dizem. Apenas tenho noção que estou no hospital e que hoje é dia de Natal.
Neste quarto de hospital, onde tem mais duas camas com dois meninos que, parecem estar mais mortos que vivos, de tão pálidos que estão, há um pequeno pinheirinho enfeitado com bolas vermelhas e azuis e estrelinhas douradas e penso: «O meu é bem mais bonito. Que falta de gosto, esta gente tem!» Mas… logo me deixo de preocupar com isso. É que, acaba de se aproximar de mim, com cara de poucos amigos, uma enfermeira com uma seringa…
– Avóóóó, tira-me daqui, por favor. Eu tenho pavor a seringas… – choro e grito. Ainda mais aflito fico, quando reparo que a minha própria avó se ri a alto e bom som. Como pode!?
– Tiago! Tiaaaago!... Acorda, rapaz! Estás maluco? Isto lá são horas de estar a dormir e a sonhar!? Óh céus… dai-me paciência.
Acordei num sobressalto, com a voz da minha avó, transpirado mas ao mesmo tempo aliviado, pois tudo não passara de um pesadelo. Gostaria de ter sonhado, com o pai natal, montado nas suas renas, voando pelo céu infinito, entoando o seu cântico de chamamento- ouh ouh ouh ouh –passando por entre as estelas, acompanhado sempre por aquelas mais brilhantes que caem e se veem brilhar através da luz da lua…carregado de prendas mas não para mim, eu que não necessito( embora goste), mas sim para os meninos, que nunca tiveram nada na vida a não ser infelicidade choro e dor, essas sim deviam ser lembradas, deviam ter um Natal, em todos os dias que o antecedem, e viverem na felicidade e paz que todos merecemos ter…
- Tiago!
Ouço de novo a voz trémula mas forte da minha avó chamando por mim!
Vou já descer vozinha…sim tinha-me esquecido que tinha prometido á avó Florinda concluir os enfeites de Natal com ela.
Desci vagarosamente as escadas de caracol, sem conseguir tirar do meu pensamento todas aquelas crianças que não sabem sequer o que é o Natal, que vivem em ambiente de guerra (tantas vezes vejo na TV), sem comida todos rotos e sujos, alguns mesmo sem casa para morar…foi então que a lagrima que guardava pelo avô Salvador, jorrou pela cara, sem a conseguir controlar…
Sentei-me num degrau da escada, até que conseguisse compor o meu rosto, sem que a avó notasse, sim porque eu não quero que ela me veja a chorar, pois choro não é “coisa” de homens.
- Tiago, Tiago! Querem ver que voltou a adormecer?
- Já vou, avó!
- Anda cá depressa, Tiago Manuel! voltava a pairar no ar o prenúncio da tempestade pela certa, já que quando minha avó acrescentava ao Tiago o meu segundo nome Manuel, fazia antever a certeza de que, na realidade, estava um pouco zangada.
Naquele dia, não sei porquê, e à parte do sonho horrível que tivera ainda que desperto para triste realidade de milhares de meninos que não sabem o que é Natal, passando-me pela memória a materialização do Pai Natal distribuindo prendas por todos eles, sentia-me ainda mais angustiado, com a agravante do meu irmão mais velho, Salvador como meu avô, viver um dos períodos mais conturbados da sua vida, pois trabalha nos Estaleiros Navais de Viana do Castelo e todos os dias em casa ouvimo-lo falar de incertezas e preocupações várias, quanto ao futuro desta empresa, com mais de sessenta anos de existência. Quanto ao meu pai, esse trabalha na marinha mercante, como contramestre de um navio que, presentemente, faz rota por terras de África. Também ele nos fala constantemente em crise no sector e, provavelmente, não vem passar o Natal connosco. Durante alguns anos, tal como seu pai e meu avô, andou embarcado à pesca do bacalhau, tendo sido, também, marinheiro no Navio Hospital Gil Eanes, aqui construído há muitos anos nos Estaleiros onde o meu irmão trabalha, hoje uma espécie de museu flutuante da nossa cidade? Mas, como no ar se respirava o espírito de Natal tinha que esquecer toda essa carga negativa. Apressei-me em fazer a vontade à minha avó, cumprindo com o prometido, ajudando-a a concluir o pinheirinho de Natal, pendurando os enfeites, os chocolates e as bolas coloridas, que bem pareciam estrelas cintilantes quando reflectidas pela iluminação das luzinhas intermitentes e multicolores. Ao lado da árvore, e como é tradição das gentes da Ribeira, a minha avó fez um arranjo, onde não falta o azevinho e colocamos um lindo presépio onde o Menino Jesus é o centro das atenções. - Sim, Tiago, enquanto eu for viva, aqui em casa, o Menino Jesus é que é o Pai Natal! Advertiria minha avó lembrando, ao mesmo tempo, a forma como as gentes ribeirinhas de Viana viviam a Ceia de Natal, onde o bacalhau (para fazer os famosos pastéis, mas dos quais eu não gosto nada) das secas de Viana era rei, complementando-se com as imprescindíveis rabanadas, o arroz doce e a aletria. No tempo dos meus avós, o galo era o prato preferido da Ceia de Natal das gentes da Ribeira, pois só se comia por essa altura, no Ano Novo, na Páscoa e no 20 de Agosto. E este ano, minha avó está na disposição de reavivar esta velha tradição.
- Avozinha, posso fazer um pedido ao Menino Jesus?
- Claro que podes, meu netinho. Basta que para isso, penses só para ti, sem dizer nada a ninguém, o que mais desejarias ter como prenda, se é que é isso que queres pedir!...
No ar pairava um silêncio profundo, apenas quebrado pela voz da minha tia Alzira Chavarria, apregoando o peixe e polvos fresquinhos trazidos da lota e do barco de um pescador amigo. Olha o peixe fresquinho!, e que faziam as delícias das gentes das aldeias da margem esquerda do Lima. Minha tia tinha clientes certos para aqueles lados. Apesar dessa estridente sonorização, lá interiorizei o meu pedido (faz com que o meu pai e o meu irmão não percam os seus empregos e os Estaleiros Navais continuem a laborar, não te esquecendo de trazer para mim uma nova Playstation, pois a do ano passado deixou de funcionar, e que todas as crianças do mundo tenham direito ao seu Natal!...), tendo sempre a esperança de que fosse ouvido.
A minha avó não se apercebeu, mas aquele menino repolhudo e de face rosada a fazer lembrar os querubins do altar-mor e do altar do Sagrado Coração de Jesus, em S. Domingos, piscou-me o olho em sinal de anuência ao meu pedido.
Naquele momento, para o pequeno Tiago Manuel, tinha-se dado um verdadeiro milagre de Natal!